QUANDO ENFIM NOS CONHECERMOS

autoria: Indira Moretti

 

A garota atravessou o Pacífico, fechada em compartimento interior, em grande companhia e solidão. E no tumultuoso silêncio de si, encerrou-se.

A garota atravessou o Pacífico e convenceu-se de que aquele atravessar era um “divisor de águas”, onde os sonhos de outrora ganharam distância ao sumirem no horizonte nem ao menos contemplado ao partir, sem que houvesse despedidas ou consenso.

Atravessou! E encerrada em compartimento interior, encerrou-se um pouco mais.

A ausência de luz, de sonhos e despedidas fez companhia à muitos que ali estavam. Não estavam sós, mas sentiam-se, cada qual com sua dor, todos presos à outra margem. Não estavam sós e igualmente sofriam a dor de estarem duplamente compartimentados. Não estariam sós, nem que literalmente estivessem. Apenas não havia paz, nem nada de pacífico que pudesse iluminar a realidade.

Se era bonita? Quem irá dizer? E era! Era bonita da cabeça aos pés. Era alegre e gentil, tinha sonhos apaixonados e adorava o chão em que nasceu.

Era gente! E gente é assim! Quando jovem sonha muito e pensa que pode o mundo transformar, que pode tirar de dentro do próprio peito toda a força e energia para transformar sonhos em realidade.

Gente é assim! Gente que sonha, que se apaixona, que busca o belo, que sente pena, que se envaidece com o que adolescentemente pensa de si, que sente raiva quando contrariado, mas depois perdoa.

Perdoa até a si próprio e aprende a rir-se. Rir-se de si, da vida, das bobagens que todos nós fazemos ao tropeçarmos e continua sonhando e fazendo planos.

Como eu ia dizendo, ela era bonita e tinha em si toda a ingenuidade que a idade lhe propunha. Dançava naquele chão, de olhos fechados ou abertos, com a certeza de que daquela forma o mundo jamais iria se acabar. Dentro daquele peito, essa era uma verdade! Então dançava!

“À imagem e semelhança? Frágil e forte é o Rei, e assim também somos nós. Quanto à Ti… Onde há em Ti fragilidade? Não! De tudo que sei é Compaixão, Tolerância e Tempo. Presado Tempo meu Senhor! Do qual és o Senhor! Tempo de plantar, Tempo de aprender.”

Explorando o novo, a garota encontrou uma construção. O salão era tão grande quanto belo, sentiu vontade e entrou. Mesa posta, nunca havia visto tanta beleza. Os utensílios eram luxuosos e lhe causaram tamanha impressão, de forma que nem lhe passou pela mente tocar nos alimentos. Estava embasbacada com o que via.

Ao perceber aproximação, sentiu medo e escondeu-se. Escondida debaixo da mesa, tão pequena quanto frágil, tão forte quanto desconhecia, ali ficou.

Fechou os olhos na esperança de não ser vista quando os grandes começaram a adentrar pela imensa porta. Porta que de “imensa” nada tinha a não ser a própria interpretação da pequena que, escondida debaixo da mesa, estava e ficou.

O cerimonial teve início, regado de carnes, pratos selecionados e boa bebida. Eram homens de poder, senhores de si, frágeis e fortes, eram Reis.

Escondida debaixo da mesa a pequena se fez presente sem o saberem. Brincadeira de criança, curiosidade, viu-se obrigada a ficar e planejou: “quieta e imóvel até que o salão volte a estar vazio”.

Tempo em que, sem poder dali sair, sentiu fome, sentiu sono e em desconforto adormeceu. Um sono entrecortado por gargalhadas e vozes imodestas que se expressavam com forte entonação. Eram homens inquietos, em tempo de discutir o que fariam ao longo do tempo para não perderem tempo de forma desnecessária.

E então ouviu falar, escutou sem compreender. Quebra cabeça de planos entrecortados por piadas de homens que entre si, sentem-se muito à vontade para falarem qualquer coisa que lhes salte a boca – boca que fala e que se enche de vinho.

Era só uma pequena, uma pequena parte do todo, uma pequena parte de si, que dolorida pela imobilidade começava a incomodar. Então ficou inquieta, ciente de que não poderia se mexer e, de olhos fechados considerava-se invisível, ou pelo menos mais confortável.

Sabia que não estava invisível, mas iludia-se para o próprio conforto. Então temeu ser vista, e uma lágrima caiu. A reunião não anunciava acabar e o desconforto crescia. Analisou possibilidades para escapar de debaixo da mesa e concluiu: “Como? Como posso eu atravessar o grande salão e não ser vista? Ainda que feche meus olhos, como?”.

“Onde de Ti esconderei a minha face oh Senhor? Face que ruborizada aponta com o nariz para o solo e não se envaidece em nada de si… Debaixo da mesa?…”.

Permaneceu imóvel e decidiu não mais pensar – não encontrara solução. Também não havia clareza sobre o que escutava. Não compreendia os assuntos, tamanha a grandeza e começava a sentir frio. Um frio daqueles que inicia pelos pés e sobe pela espinha dorsal, desconfortando o corpo todo e impondo encolhimento – mas era pequena e não havia muito a encolher.

Então voltou-se para dentro e encerrou-se. Em suas construções a mente criou asas, as mãos não descansavam enquanto os pés verdadeiramente latejavam de cansados. Estavam aquecidos dentro de botas, aquecidos e doloridos por não repousarem, mas aquecidos. Então o coração começou a incomodar, estava inquieto e tardou a incomodar, aguentou o quanto pôde, mas começava a incomodar.

Miserável que sou! Sentiu raiva. Já bastava! Não queria sentir medo, não queria sentir frio. Já bastava! Almejou o impossível, a invisibilidade, rota de fuga, sair sem ser notada. Sem resposta, voltou a viajar e acalmando quem incomodava, surgiu ideia.

Viajou novamente e, aproximando-se do belo posicionou-se como tal. Decidiu correr o risco de incomodar, correr o risco de ser vista, correr o risco de sair, pois dado o avanço das horas a presença da pequena já era de fato responsabilidade de todos e não apenas do anfitrião. Afinal, ninguém havia notado.

Não deveria estar e saiu de debaixo da mesa com calma e leveza. Como se acordasse após hibernação, arrastou-se até a cabeceira do anfitrião e, passando entre tantas pernas, homens e cadeiras, saiu.

Quando em pé e ainda sem ser notada, pois a cadeira do anfitrião era alta, arrumou os cabelos, sem ter muito o que arrumar. Endireitou as vestes, sem ter muito a endireitar e dirigiu-se à enorme porta caminhando lentamente sem olhar para trás.

Pairou um silêncio oportuno no salão, que merecia ter prenunciado medo e o gelar da espinha dorsal, mas não quis experimentar tal sensação e prosseguiu em sua ilusória invisibilidade.

Não quis pensar e prosseguiu, abrindo com dificuldade a enorme porta, saiu sem olhar para trás. Fechou a porta lentamente e caminhou. Estava decidida a deitar-se em lugar quente, compartimentado e, ficando quieta diluir-se em milhares de átomos, permear os espaços do Tempo, do pensamento, das intenções e assim, dissolvendo-se um pouco e pouco a pouco a cada instante, tornar-se-ia plena.

Não sabia estar entre gente grande, que de tão pequena impõe medo. Não sabia estar consigo, equilibrando o que o Tempo distanciou ao atravessar o Pacífico. Não achava em si luz, pois seu coração não estava pacífico. Então, não por curiosidade, mas por amor a si, encerrou-se em seu compartimento interior como que encolhida debaixo da mesa rogou:

“Ensina-me a orar, a penetrar nos espaços sagrados sem que aflita eu esteja. Ensina-me a orar, a aproximar-me de Ti sem merecimento, sem questionamento, sem apelos ou intenções, apenas aproximar-me. E de forma tranquila poder tocar-Te em pensamentos, em reverência e meditação. E quando então estiver em meus ofícios, imbuída do pacífico possa então estar mais plena e dosar o que fazer. Não é poder, nem glória. Não é louvor ou fúria. Trata-se de querer viver em Sua memória. Eis as minhas mãos, meus pés descalços, meu coração, meus pensamentos, minha intenção: postos a Ti. Não me deixe tremer diante do imprevisto, nem esmorecer quando isso por possível. Faz-me forte e resignada. Ilumina a estrada.”

E adormeceu nos braços do Tempo…

“Agora que adormeci naturalmente e aquecida… Quero acordar no Tempo devido. Sem as dores do passado, sem o medo do presente e com vistas ao futuro. Desejando que todo amor que couber em meu peito, possa inspirar-me ao olhar para o futuro. E quando em fim puder ser digna de confiança, que eu possa dosar com sabedoria as ferramentas disponíveis, para assumir riscos calculados e responsabilizar-me por eles sem temer ou vacilar. E quando enfim possa enxergar, que eu aprenda a perdoar. E quando em fim possa decidir, que eu aprenda a transformar. E quando enfim possa colher, que eu intente em repartir.”

“Não nascemos prontos, e neste sistema de imperfeições precisamos aprender a equilibrarmo-nos em busca da sabedoria: buscar o equilíbrio no mundo das imperfeições.”

Quero acordar!