DOMINGO DE SOL

autoria: Tatiana Soares

 

Isadora despiu-se em praça pública, sem ruborizar, sem pudor. Depois caminhou descontraída e cumprimentou aqueles que, embasbacados dirigiram-lhe o olhar.

Cumprimentou e conversou com tanta naturalidade, que estranho mesmo lhe parecia o embaraço alheio.

Era domingo de sol e a praça estava cheia de gente ocupada em fazer o que faziam. Alguns a passear, outros tantos trabalhando e Isadora desfilando: nua!

Mas, não era um desfile de exibição.

Seria ousadia e ambição, disfarçadas de nudez?

Ou apenas a completa exposição daquela pele branca, querendo dar fim à palidez?

Eu não sei! Fiquei de longe observando, buscando compreender, sem julgar.

Depois de certo tempo, Isadora cansou de caminhar e sentou-se num banco, ao lado de uma senhora que, sem incomodar-se com a sua nudez, olhava-a com simpatia, tratando-a como se estivesse bem-vestida e insistindo em não dirigir o olhar abaixo da linha do ombro de Isadora.

Continuei trabalhando, mas insistindo em observar e comecei a rir da contradição – paradoxo em praça pública.

Era uma jovem senhora, modesta e afável, dividindo o assento público com a irreverente nudez jovial daquela criatura divinamente bela.

E por falar em Isa, por falar em Dora… Dora, doura mesmo!

Já era 12:15h e o sol estava ardendo. Isa ou Dora, seja lá como for, começou a dourar e arder naquela cena.

Então, despediu-se com gentileza e foi para casa nua, sem saber onde havia deixado as vestes.

Observei tudo e confesso que não compreendi nada. Eu sou engraxate, tenho apenas 23 anos, aprendi a ler e escrever, mas não frequentei muito a escola. Meu ofício, por enquanto é esse. Minha família é de sapateiros – é disso que nós entendemos.

Trabalho em silêncio, aceno com a cabeça e sorrio para agradecer as moedas que me são ofertadas após o lustro.

Sento-me em um banco baixinho. Tenho plena proximidade com o chão e observo bem os passos, bem como o pisar dos transeuntes. A sonoridade dos diferentes sapatos em pisadas leves, outrora pesadas. Observo tudo.

O passo firme da mulher leve, o pisar arrastado do homem pesado.

O passo em falso da embriagues, o passo apressado – mais um freguês.

São detalhes que me distraem: sapatos com formatos e cores diversos.

Sou engraxate! Serei sapateiro no futuro próximo.

 

Sete dias depois: Domingo de sol.

Lá vem Isabela, vestida em fina estampa. Tão bem-vestida que parecia nem ter nascido nua.

As vestes lhe caiam como luva, recobrindo aquele corpo alvo que, mesmo sem planejar, memorizei.

Isabela esta Isa, estava Bela! E agia como quem sabia disso.

Pisou o chão da praça como se nunca houvesse antes. Observei sem compreender.

Em silêncio, apreensivo, senti meu peito disparar, minha face ruborizar e um calor imenso, incondizente com o sol das 8:45h.

Maldita Isabela! Cruzou a praça sem cumprimentar viva alma. Parecia viajante em país estrangeiro, mas preservava a leveza dos passos que, sem pressa a conduziam.

Acho mesmo que Isabela flutuava. E com ela, meus pensamentos…

Fui surpreendido pela bronca do freguês:

– “…ei! Acorda! Tá distraído por quê? Tenho pressa!

– Sim senhor! Desculpe!

Vendo Isabela, desejei Isadora. Acabou meu domingo de sol!

Todo sapato era apenas mais um sapato. Cada passo era irritante, independente do compasso.

Odeio Isabela! Bela mesmo é Isadora… Nua! Dourando ao sol do meio-dia, sentada onde posso vê-la.

Meu domingo foi difícil e nada humorado, fiquei apreensivo na semana seguinte, tentando imaginar como seria o próximo domingo: Isabela ou Isadora? Quem iria pisar minha praça, o meu chão?

Iria mesmo é pisar meu coração!

 

Terceiro domingo:

Engraxei os meus sapatos antes de sair de casa. Cheguei mais cedo à praça e presenciei o amanhecer – Domingo de sol!

Petrificado, ouvi o silêncio e o ruído dos passos que me descompassam: Isadora e Isabela caminhando juntas, lado a lado.

A primeira em franca nudez. A segunda em extremo luxo.

Eu não entendi… Cocei minha cabeça e depois a sacudi, como quem quer acordar. Pensei estar alucinando.

Ambas pisavam leve aquele chão.

E eu, desconfiado, decidi não tirar meus olhos delas.

Era uma desconfiança perplexa, que pouco a pouco foi cedendo lugar à raiva de quem se sente traído por si próprio.

Decidi não trabalhar. Recolhi meus artefatos e de longe fiquei observando.

Isabela era figura bem afeiçoada, conhecia muita gente e fez seu passeio público com graciosa simpatia.

Isadora parecia não ser notada. Sorria e estava alegre, mas ninguém lhe dirigia o olhar.

Sou jovem, tenho pouco estudo e inábil compreensão do mundo. Entendo mesmo é de sapatos, mas não sou tolo! Sapatos não caminham sozinhos. Tenho uma boa leitura dos meus clientes pelo sapato que usam, pelo modo que pisam, como caminham.

Conheço bem!

Há sapatos que são discretos, outros, que são ousados.

Há sapatos que são novinhos, outros, que são surrados.

Há sapatos que não se repetem e também os que ameaçam.

Há também os que são blindados, pelo ofício do paço público.

Há aqueles que se disfarçam, mas no fim só fazem barulho.

Conheço sapato de gente modesta e o brilho da luxuria.

Conheço o pisar de gente honesta e de quem de si, muito se orgulha.

Conheço o desgaste dos sapatos de quem caminha e pisa torto.

Assim como daqueles que arrastam o pé, meio vivo, meio morto.

Percebo no desgaste dos sapatos, os inúmeros percalços.

Mas não tenho por cliente a nudez: os pés descalços…

12:15h – Isadora está dourando. Então a vejo tocar o ombro de Isabela, que consente com a cabeça, sorri e em seguida se despede. Ambas se levantam e vão para casa. Pisando leve aquele chão, da minha praça, meu coração!

Sem compreender, decidi ir para casa e não pensar em “Isas”.

Passei a semana seguinte com semblante sério, tentando varrer da mente qualquer pensamento ou expectativa sobre o próximo domingo.

Ainda assim, meu olhar ficou distante e com frequência alguém fazia menção a isso.

 

Quarto domingo:

Eu não queria sair da cama, não queria ir para a praça, não queria ver ninguém.

Poderia eu? Um jovem engraxate, chegar perto de Dora? Em sua plena nudez? Como iria disfarçar o rubor em minha face, o desejo em meu olhar?

Isabela não! Impossível! Ela jamais olharia para mim. Rica!

Depois de muito relutar, levantei-me. Cheguei atrasado, atendi três clientes em tempo hábil e, quando o quarto cliente sentou-se, observei ao longe Isadorabela chegar.

Metade menina, metade mulher. Não estava nua como era comum à Dora, nem bem-vestida como a Bela Isabela.

Era comum àquela época um vestido bem fechado, sem o corpo desnudar.

Nudez em praça pública? Só podia incomodar!

Mas Isadorabela, contrariando os bons costumes, expunha ao sol seus braços alvos e longos, assim como as canelas.

Caia-lhe por sobre o corpo um tecido leve e fino, sem transparecer a beleza daquele corpo que outrora avistei. Usava um chapéu de abas largas, protegendo-a do sol. E mantinha os pés descalços.

Então pensei: se está descalça é Dora e não Bela. É a minha Isadora disfarçando-se de Isabela.

Então confuso, assumi: eis que de fato está bela. Tão Bela quanto Dora!

O que faz um homem apaixonado que covardemente não sabe o que fazer? Fica assim: de longe, tentando decifrar enigmas.

12:15h – Isadora, em posse de seu chapéu de abas largas não se ausentou da praça. Por volta das 13:30h não conseguia mais pisar o chão, pois estava quente.

Então viu-se em dificuldade e sentou-se. Endireitou o chapéu e recolheu os pés sobre o banco.

Naquele instante, vendo aqueles singelos pés descalços, desprotegidos, eu me senti o rei da praça.

Como quem sabe o que fazer, vasculhei meus artefatos e, com papelão, couro e cadarços, improvisei uma sandália. Sou um artista!

Recolhi meus artefatos, encorajei-me e caminhei até ela. Ofereci-lhe as sandálias, sem nada dizer.

Graciosamente Isadorabela sorriu, com um olhar sereno, a face rosada do sol.

Tão Dora… Quanto Bela!

A minha Isa: sorriu para mim!